#33 - Doces bárbaros
estava chovendo na rua e ela só percebeu depois de sentir suas meias já molhadas. "merda", disse quase simultaneamente ao carro que lhe passou ao lado jogando-lhe uma quantidade exorbitante de água.
foi pegar religiosamente o salário no banco, mas como sempre este estava atrasado, revisou mentalmente o momento em que acordara apenas para perceber que não havia levantado com o pé esquerdo - mesmo porque isso não era possível, já que sua cama jazia encostada na parede sinistra do quarto, dando apenas um pé como opção de apoio ao acordar.
pegou um café na padaria antes de entrar no trabalho, mas não pode sentir o prazer de degustá-lo junto à um cigarro, pois estes estavam quase tão molhados quanto ela própria. mas não se deixou abater, nem mesmo ao subir as escadas que davam para seu escritório, quando, com a desatenção própria da pressa, escorregou, deixando que o líquido quente caísse pesadamente em seu peito. era só o que lhe faltava: uma mancha de café. o fato que mais a preocupava, no entanto, era dor causada pela recente queimadura.
foi ao espelho do banheiro desabotoar a camisa, apenas para conferir a mancha vermelha que o café pintou em cima de seu peito esquerdo; "demarcando o coração", pensou. não havia a possibilidade que este se queimasse, no entanto, ele já estava em chamas. "como sou brega", disse em voz alta, se refazendo da declaração ridícula, tão típica dos apaixonados recentes.
sentou em sua mesa, irritada pela sequência de pequenos desastres do dia, amaldiçoando as estrelas no céu que haviam lhe desenhando esse destino, até que sentiu seu bolso vibrar.
era uma mensagem dele, somente ele, o único ser existente capaz de reverter sua má sorte, ou pelo menos fazê-la se esquecer completamente de suas roupas encharcadas, da mancha de café, dos cigarros não fumados e da dor da queimadura no peito.
trocaram mensagens sobre amenidades e riram, como só os apaixonados sabem fazer, dos acontecimentos da noite anterior.
o computador ligou, ela deixou o celular de lado enquanto repassava mentalmente o momento em que acordou. não, ela não havia acordado com o pé esquerdo afinal.
Mural de avisos
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- Reflexão: a Amazon está mudando a forma com que os romances são escritos?
- Um ano horrível: um guia para passar 365 dias lendo livros de horror
- “It´s only Rock’N Roll but I like it”: as dez melhores biografias do mundo do Rock
📺Para assistir:
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🎵 Para ouvir:
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🧶Outras Dicas:
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⭐Wishlist:
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Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificadaNão tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dorNão podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia a dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viverNão podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igualNão podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de serNão tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do malNesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Alexandre O’Neill - “Um Adeus Português”
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“It’s Halloween… I’ve got my Bob Dylan mask on.”
Bob Dylan, em 1964
Tesourinho
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A Kalany Ballardin - @kalyoutloud - é uma designer que trabalha com a diagramação de livros e fala em seu Insta sobre um dos assuntos que mais entende: Literatura, como já era de se esperar. Eu amo as suas dicas de livros e ela é minha referência no que diz respeito às publicações de San Francisco, EUA, e os escritores da geração Beat
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