Desde que me conheço como gente sempre houve uma demanda, quase uma imposição, para que eu fosse bonita. Minha mãe escolhia com esmero laços, vestidos e botinhas para eu usar. Existia em casa a instituição “roupa de sair“, aqueles trajes escondidos no alto do armário que só eram usados para ir a festas de aniversário, ao templo ou ao shopping - não necessariamente nesta ordem de importância.
A cobrança que nos meus primeiros anos de vida veio de outras pessoas, com o passar do tempo foi interiorizada e passou a vir de mim mesma. Por anos, especialmente durante a fase cruel e cheia de hormônios - e espinhas e aparelhos ortodônticos - da adolescência, sofri para sair de casa. Era sempre preciso estar aparentando o melhor possível.
Nada contra quem gosta de se arrumar e se vestir bem. Acontece que eu sou schlepper - uma palavra em ídiche que pode ser traduzida como algo entre "largada" e "esquisita" - e esse esforço todo nunca foi algo natural para mim.
Além de tudo, tenho quase 1,90m de altura e ter que procurar uma roupa bonita, que combine e me caia bem é uma tarefa quase hercúlea. Nada nunca serve direito no meu corpo completamente fora do padrão local, talvez até mesmo mundial.
Isso sem falar que é preciso passar um pouco de maquiagem, mas não muito para não ficar vulgar; pentear o cabelo, o que no meu caso também sempre foi difícil, pois minhas madeixas são mais teimosas do que a taurina que vos escreve. É preciso tirar os pelos do corpo, com exceção de alguns em locais estratégicos. É preciso fazer a unhas e tirar a cutículas e por aí vai numa lista que nunca para de crescer.
Ou seja, para mim, me arrumar sempre foi uma tarefa exaustiva, mas da qual não podia escapar, pois fui criada pensando que é preciso estar sempre bonita.
Com a maternidade essa pressão interna se agravou. O tempo que eu tinha para dedicar a mim mesma diminuiu muito e para piorar, por muitos anos eu não tive uma blusa que não estivesse com manchas de vômito, comida e outros desejos de seres humanos minúsculos.
Mas eu achava que era preciso provar para todos que estava dando conta, que a maternidade não estava de jeito nenhum afetando minha capacidade de equilibrar todas essas demandas estéticas.
Até que um dia, já passada a casa dos 30 anos, li uma frase mais ou menos assim: "você não precisa ser bonita". E foi uma espécie de choque. Ninguém nunca havia me dito isso antes. Ênfase para o nunca.
Pensar que eu não preciso ser bonita ou até mesmo me preocupar em tentar, me deu uma liberdade imensa, foram quilos de pedras metafóricas saindo de cima das minhas costas.
Quer dizer que posso usar meu cabelo do jeito que eu quiser, não preciso me preocupar com roupas, sapatos, formato do corpo, cronograma de depilação, marcas de estria, flacidez e tamanho da barriga? Quer dizer isso mesmo, não preciso me preocupar com nada disso se não quiser.
Quando li "O Mito da Beleza", da Naomi Wolf, muitos anos atrás, antes de ele ser cancelado, minha cabeça cresceu três vezes, tal qual o coração do Grinch no Natal de Whoville. A autora explica que a busca eterna pela beleza foi uma forma de domar novamente as mulheres que se viam livres de tantas amarras sociais após a segunda onda do feminismo nos EUA, lá pelos anos 1970.
Ou seja, é preciso que a mulher se sinta feia diante de um padrão inalcançável de beleza para então entupi-la de anúncios, vender cremes e regimes de todas as espécies para que ela esteja muito ocupada para tentar uma nova revolução.
É triste demais ver a mulherada, eu inclusa, fazendo tanta coisa bacana e ainda se sentindo incompleta por conta desse mito, correndo atrás dessa pedra que sempre rola de novo da montanha como na história de Sísifo. O padrão imposto é inalcançável, vamos lembrar.
Então, amiga, se nunca ninguém te disse antes, eu falo agora: você não precisa ser bonita. Você precisa ser feliz do jeito que for - mas não o tempo inteiro também, mas isso é assunto para outra news.
Um abraço,
Sarah
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“If a book is tedious to you, don’t read it; that book was not written for you.”
Jorge Luis Borges
.Dicas da semana
Sobre livros e leituras
- Finalmente consegui verter em palavras - quase - tudo que senti ao ler “Aos Prantos no Mercado“, livro de estreia de Michelle Zauner, líder da banda indie Japanese Breakfast. Partindo da morte da própria mãe, ela relata questões que vão muito além como luto, como relação entre mães e filhas, identidade e por aí vai
- Entre minhas outras leituras, estou chegando ao final de “Guerra e Paz“, faltam apenas cerca de 400 páginas, e finalmente estou entrando no ritmo. Também estou terminando “Ao Paraíso“, da Hanya Yanagihara, e gostando muito menos do que queria
Mais sobre o mundo literário…
- Quero morar rodeada de livros na casa da Emma Straub
- Livros para formar e transformar
- Por que Borges, Pound e Beauvoir não ganharam o Nobel
- O redescobrimento de Dinah Silveira de Queiroz
- Leia um trecho de “Aos Prantos no Mercado“
- Leia como um artista
Para assistir
- Saudades do padre gato de “Fleabag“? Seus problemas acabaram! Ele volta às telas do Amazon Prime com o belíssimo e hilário “Catherine Called Birdy”, baseado num livro infanto juvenil que é uma gracinha e com direção de Lena Dunham - que pode ser uma figura controversa, mas tem um talento danado. (Minha única ressalva foi a escalação do namorado da Taylor Swift para o elenco. Por favor, parem de tentar fazer a gente gostar desse cara)
- “The End of the Tour” é um filme da produtora A24, fato que já valeria uma indicação por si só, pois sua curadoria de obras é inacreditável. Não fosse apenas isso, o longa narra um trecho da vida de David Foster Wallace, um dos maiores escritores norte-americanos das últimas décadas. A obra é baseada nesse texto lindíssimo da revista Rolling Stone (Disponível no Stremio)
Para ouvir
- Já que falamos de Michelle Zauner na resenha da semana, nada mais justo do que indicar um som de sua banda Japanese Breakfast. “Be Sweet“ tem todos os elementos que amo, sintetizadores e uma vibe meio etérea/ filme da Sophia Coppola
- E esse cover de “Head Over Heels“, super clássico do Tears for Fears
- O simbolismo sônico da Bjork
Outras Dicas
- O vibrador e os benefícios da masturbação para a saúde feminina
- Dicas para usar suas milhas
- Visite os lugares por onde Anthony Bourdain passou
- Aprenda a lidar com a ansiedade
.Então vamos aos links
(Indico o uso do site 12ft ladder para os links com Paywall. Para os que estão em outras línguas, o Google Tradutor quebra um galho)
Eu deixei o Irã em 1982. Eu deveria estar lá agora
.Tesourinho
Falar de “Head Over Heels“ me deu saudades desse filme que marcou minha adolescência. Se você ainda não assistiu “Donnie Darko“ faça-se esse favor imediatamente. (Disponível no Prime Video, da Amazon)
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Cada vez mais, graças a minhas amigas de Subsfack, entendo que não preciso ser bonita e que posso até ser a menos inteligente do rolê. O pertencimento que encontro por meio das crônicas das minhas autoras preferidas neste canto da internet tem sido libertador em muitos sentidos! p.s. Obrigada por me linkar!
Exatamente! No meu caso foi com o peso, ser magra a todo custo.. e hoje eu só falo pqp não devo isso a ninguém, tô bem, valeu.