girou duas vezes a torneira da direita e três a da esquerda. colocou os dedos quase sem unha - elas pareciam desaparecer conforme seu nervosismo aumentava - para sentir apenas que tinha errado novamente a temperatura da água. não se dava com chuveiros que não fossem elétricos.
a própria energia elétrica parecia ter chegado apenas alguns anos antes naquela cidade que conservava o charme enferrujado e decadente do começo do século passado.
não se assustaria se visse passando um bonde na rua, pensou quando finalmente sentiu uma temperatura agradável de água passando por entre seus dedos. encheu a banheira e se deitou.
olhando para os detalhes da decoração, pensou que os azulejos verdes na parede daquele banheiro de hotel só serviam como prova de sua tese, de que estava presenciando os últimos momentos de uma sociedade em extinção.
a cor, tão fora de moda, confirmava que alguém há muito anos construiu aquele estabelecimento com cuidado, mas que não se preocupou em voltar para reformá-lo.
afundou a cabeça dentro da água num esforço inútil de clareza. ainda se espantava ao pensar que tivera ido tão longe por um afeto há tanto tempo perdido. atravessara estados e países, apenas para se ver tão longe de casa e tão perto do passado.
lembrou dos olhos claros, daquele coração tão exposto. era tudo tão belo que teve medo. fugira inutilmente, apenas para voltar no ano seguinte com o rabo entre as pernas pedindo perdão. tinha certeza do reencontro, mesmo sem saber seu endereço, telefone ou até mesmo o nome de seus pais.
ter ido até ele naquela cidade era apenas dar uma pequena força ao acaso, acreditara inocentemente. esperou pacientemente um, dois, três dias, mas no quarto quedou sem fé.
enquanto a água começava a esfriar se lembrou da noite anterior no bar. fez do garoto que tão claramente lhe queria, uma espécie de conselheiro sentimental contando seus segredos etílicos. ele também tinha belos olhos, mas não era quem veio encontrar.
- voy llamar a èl - disse soluçando sem saber se era um sinal de choro ou do abuso do álcool.
-¿ y se el queda com otra chica ahora ? - respondeu com um pouco de dó o outro rapaz, que já não tinha ganas de tê-la.
- entonces me voy morir - respondeu com o romantismo exagerado dos bêbados quando ouvem tango.
as horas se transformariam em meses e anos e ela não morreria, no entanto. mas ainda não sabia disso. não tinha passado daquele ponto da juventude quando aprendemos que os amores vêm e vão e que a única coisa que nos deixam são belas lembranças.
mas, num sentimento de decepção que talvez apenas Napoleão entenderia ao ser derrotado pelo grande inverno da Rússia, sentiu que era hora de admitir seu fracasso. e finalmente deixou que essa ideia fixa disfarçada de romance batesse em retirada. no dia seguinte partiria ela também, afinal.
se assustou com a textura enrugada de seus dedos devido ao tempo de exposição a água. era, de fato, hora de ir.
Mural de avisos
- Ando testando esse formato de começar a newsletter com um textinho autoral. Não vai acontecer sempre, acredito. Mas, em todo o caso, se você não curtir esse modelo, é só pular e continuar para a curadoria de conteúdo que continua logo abaixo
- Para os links com paywall: https://outline.com/
- Você gosta de receber essa newsletter? Pois eu AMO escrevê-la. Compartilhe com suas amigas que você acha que também podem curtir essa nossa comunidade - e se puder curta no coraçãozinho acima, ajuda imensamente <3
📅 Dicas da semana
📚 Sobre livros e leituras:
- Ando lendo “Duna“, que não por acaso é tido como o maior livro de Ficção Científica de todos os tempos, e revezando com “A História Secreta“, de Donna Tartt, a mesma autora de “O Pintassilgo“
-O título dessa newsletter, “Perto do Coração Selvagem“, faz referência o livro de mesmo nome de Clarice Lispector, que me arrebatou profundamente quando li aos 15 anos. Recomendo
- A jornalista Babi Bom Angelo, que escreve a newsletter “Queria ser Grande, mas desisti“, fez um relato da sua história de amor pela escrita do Alejandro Zambra
- A silenciosa revolução dos Clube de Leitura - abrace esse caos
📺Para assistir:
- Tenho assistido a temporada nova de “Grey´s Anatomy”, que não recomendo, e “Scenes of a Marriage“, na HBO Max, que recomendo DEMAIS
🎵 Para ouvir:
- Sempre AMEI Peanuts, mas foi só depois de grande que percebi como a trilha do desenho é perfeita
-A banda Rhye no Tiny Desk - pena que a melhor música deles ficou de fora
-Senhoras e senhores... Mr. Leonard Cohen
Culinária:
- Essa panqueca <3
- A preparação é uma das etapas mais importantes - e ignoradas - na hora de cozinhar
🧶Outras Dicas:
- Um Atlas gastronômico interativo
- Não vá ficar de fora da Feira do Livro da USP - que acontece até dia 15
- Maria Bethânia falando sobre Clarice Lispector e a música negra norte-americana
⭐Wishlist:
- Os absorventes de pano da Aiocá
- Todos os produtos da Twoone Onetwo, marca vegana, brasileira e natural
Voltar à vida social agora parece alternadamente cedo e tarde demais. Fui tomado por uma espécie de ansiedade que trazia doses iguais de euforia e autocondenação
Então vamos aos links
- Saudades da correria do cotidiano pré-pandêmico
- … e a saudade da época que as fotos nas redes sociais não eram editadas
- Raphael Vicente, a melhor pessoa da internet
- Agora você pode alugar o apto. da Carrie de Sex and the City pelo AirBNB
- Minha gordura não me define
- Make para quem não vê
- Como conversar com seu amigo que não quer se vacinar?
- "Não tenho mais idade para isso": como deixar o próprio etarismo de lado
- Certas coisas eu não sei dizer
- 5 dicas para ter um lar mais sustentável
- Prêmio Multishow cancela votações e elege Marília Mendonça a cantora do ano
me recuso a dar o máximo sempre. primeiro porque não precisa, o meu mínimo já é super bom. e também porque gosto da transgressão que é a gente dar o mínimo, nessa sociedade que fica exigindo alta performance profissional, emocional, física e social. me recuso a dar o máximo como se fosse normal, ainda mais conhecendo esse sistema de pessoas permanentemente insatisfeitas. por mais que a gente dê nosso melhor, nunca será o bastante. onde vai parar? ou já parou. posto isso, dou o mínimo e posso às vezes entregar um pouco mais - o suficiente para não virar padrão nem acostumar mal quem recebe. o máximo não precisa ser default, é um plus. e vamos administrando. menos é mais, diz o ditado.
Luciana Andrade, na maravilhosa newsletter FlowsMagazine
Tesourinho
Good vibes demais essa canção
@ da Semana
(Com todos seus defeitos, eu ainda AMO o Instagram. Graças a um tantão de pessoas bacanas que criam conteúdo por lá, a rede social é uma das minhas maiores fontes de inspiração)
Como a própria Joana Ramos - @joanalendo - se descreveu, ela é uma pessoa que ama chás e livros e eu amo as dicas de leituras e análises que ela faz, principalmente de livros de fora que ainda não foram editados por aqui
Apoie meu trabalho
- Essa newsletter é gratuita e deve continuar assim. Mas caso você queria fazer uma contribuição mensal pelo meu trabalho - e ter a chance de concorrer a um livro por mês -, dê o upgrade de sua assinatura neste link. Se quiser me pagar um café, esse é o link da minha conta no Ko fi e o meu pix é: sarahguiger@gmail.com. Desde já eu agradeço ❤️
- A ganhadora do sorteio desse mês foi a Bianca Bibiano, que vai receber em casa “Por que a Criança cozinha na Polenta?“, um livro lindíssimo da escritora romena Aglaja Veteranyi
#34 - Perto do coração selvagem
Ahhh obrigada por compartilhar o texto do Zambra <3 adorei a news de hoje!