# 39 - Em clima de adeus
Ficou pensando em quanto tempo levaria para dormir em paz. Se virou na cama, ajeitou a cabeça no lado esquerdo do travesseiro e inverteu a pergunta, como fizera com o corpo, tentando lembrar da última vez que dormira em paz, sem a nuvem de culpa que velava seu sono e chovia sobre seus ombros e sonhos.
Demoraria ainda incontáveis minutos, ou quem sabe horas, para adormecer, algo que até então se não inédito, era ao menos bastante raro em sua história.
Joaquim era do tipo que não tinha vergonha de dormir e o fazia em qualquer local e situação. Como na festa de 15 anos de sua filha, pecado pelo qual jamais foi perdoado pela ala feminina da família.
É bem verdade que se Laura, a ex-mulher, nunca o perdoaria, Joaquim também nunca pediria para ser perdoado.
Com a filha, Maria Helena, não seria muito diferente. Desde o início sua relação parecia um contrato comum de serviços prestados; ele lhe dera o dom de respirar e ela que fizesse o que bem entendesse com isso.
Como pai, a alimentou quando foi preciso e até tentou a carregar algumas vezes no colo, mais por pressão da esposa do que por vontade própria, mas estava disposto a tentar.
Com Julia foi ainda mais glacial. Não conseguia chamar de filha o fruto de uma união ocasional com Vera, a amante que um dia não aceitou seu suborno suplicante por um aborto, mas ficou com o dinheiro.
Com o nascimento da segunda filha acabou o pouco que restava do primeiro casamento. Melhor assim, pensou, dando os ombros.
Agora tantos anos mais tarde, achava quase engraçado que a solidão o viesse atormentar. De onde vinham essas culpas mal vividas, caindo em seus ombros feito chuva, sem deixá-lo dormir?!
Tinha tantas mulheres em sua vida, mas nenhum amor. Talvez, pensou, mesmo depois dos oitenta anos de idade era preciso pedir desculpas, fazer emendas.
Mas isso ficaria para o dia seguinte. Dormiu em paz, numa cama encharcada de mágoas.
Mural de avisos
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- Ando lendo um combo Carmen Maria Machado - e amando. Em papel minha leitura é “Na Casa dos Sonhos“ e em e-book “O Corpo dela e Outras Farras“
- Um Ulysses muito louco
- Relendo “Mrs. Dalloway“ durante uma Pandemia que parece não ter fim
Para assistir:
- Acontece até o dia 17 o Festival de Cinema latino-americano de São Paulo - com parte da programação online
- Os melhores filmes de 2021, segundo o jornal The New York Times
Para ouvir:
- Uma playlist com o melhor das músicas catárticas
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- Os 50 melhores álbuns de 2021 segundo a publicação especializada Pitchfork
- No repeat essa semana:
Outras Dicas:
- 3 perguntas essenciais para você se fazer antes de ir às compras
- Essa série de yoga com a Pri Leite
- A parceria entre os apps Waze e HeadSpace que promete deixar suas horas no trânsito mais tranquilas
Wishlist:
- Sonhando com abril, quando chega essa lindíssima edição do clássico “Middlemarch”, de George Eliot
Ela olhou para a fachada do prédio. Piso de taco aqui queria dizer que a madeira era tão velha e esbranquiçada que nenhuma quantidade de verniz ou goma-laca esconderia as marcas e os riscos antigos, os anos de móveis arrastados pelo chão, as marteladas do tempo, crianças, bêbados, mulheres porcas e desleixadas. Aquecimento a vapor queria dizer um barulho estridente e ressonante vindo dos aquecedores bem cedo de manhã, e então um chiado que perduraria o dia inteiro
Ann Petry no livro “A Rua“, de 1946, que foi a primeira publicação de uma escritora negra a vender mais de um milhão de cópias nos Estados Unidos
Retrospectiva do Google de alguns dos termos buscados que mais representam o ano de 2021
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Tesourinho
Faz aproximadamente 11 anos que vi esse clipe pela primeira vez e continuo apaixonada por tudo, as atuações, a música, a letra, a voz do Cee Lo. Vai agradar aos fãs de We Found Love, da Rihanna.
Brian Eno explicando sua teoria de que artistas são divididos em duas categorias: fazendeiros e cowboys
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